junho 14, 2013

A cidade é concreta


Nenhum direito de manifestação se sobrepõe ao direito de ir e vir de São Paulo: o direito de ir e vir dos carros, claro. Richard Dawkins argumentou que nós não passamos de um meio em que genes e memes se reproduzem. São Paulo, como organismo, não passa de um meio em que os carros se reproduzem. Tudo em São Paulo evolui para satisfazer os carros: trabalhamos para que os carros possam ser comprados, a cidade não pára para que os carros possam circular e manifestantes pacíficos são atacados pela polícia pelo mesmo motivo.

Há uma coisa mais fundamental do que a circulação dos carros, entretanto, que justifica a polícia fechar a Avenida Paulista para evitar que o protesto feche a Avenida Paulista: impedir que as pessoas descubram que São Paulo existe. O espaço da cidade não pode ter outro sentido além de um sistema de circulação de carros, o que equivale a sentido nenhum. Por esse motivo os vereadores proíbem festas na rua. Por esse motivo o Minhocão ainda não é um parque. Por esse motivo foi esquecido o projeto de uma Avenida Paulista subterrânea.

A cidade pertence aos carros e tudo pode ser feito para garantir o trânsito livre de carros.

Quando o editorial da Folha de S. Paulo afirma que é preciso “retomar a Paulista” o editorialista está defendendo o trânsito, a cidade como um espaço abstrato em que se movimentam os carros. Mas quem precisa retomar alguma coisa somos nós. Precisamos retomar a Paulista. Precisamos retomar a cidade inteira. Precisamos criar sentido para que São Paulo exista.

O filósofo francês Henri Lefebvre escreveu que o espaço urbano é uma “mera abstração”, que ele só passa a existir de verdade por meio de redes e caminhos e relações. A cidade só existe quando nós estamos na rua. São Paulo só existe se São Paulo não for apenas um espaço de passagem. Até pouco tempo atrás eu achava o Minhocão um espaço abstrato. Depois que eu me mudei para a Amaral Gurgel há quase um ano descobri que São Paulo existe toda noite no Minhocão. É só os carros pararem de passar às 21h30 que as pessoas vão lá correr, andar, passear com o cachorro, fumar maconha, tocar violão, namorar, jogar futebol.

Para quem o Minhocão ainda é um espaço abstrato, ir lá à noite é perigoso. Não é. A cidade fica mais segura quando ela existe, quando ela é ocupada. A resposta para a violência não é parar de ir a restaurantes ou pegar táxis em distâncias que seria possível ir a pé. É sair mais, andar mais, ocupar mais. É fazer mais festas na rua, e mais protestos também. É fazer uma Virada Cultural maior e mais organizada. É liberar os blocos de rua no carnaval e fora do carnaval. E nessas coisas o Estado e a polícia precisam ajudar a população, não lutar contra.

Os carros não querem que isso aconteça, não querem que São Paulo exista fora de alguns poucos ambientes controlado. Não querem que fique óbvio que eles são o problema da cidade, que eles causam o engarrafamento. Os carros não toleram outras formas de transporte e para eles a cidade não é nada: só o caminho entre a casa, e o trabalho, e o shopping.

A cidade não é um caminho entre a casa e o trabalho, as ruas existem, a cidade é concreta.

Compartilhe!